O que sobrou do céu

Composições densas e arranjos originais. É assim que define-se brevemente a banda nacional O Rappa. Cada letra que vai da sutil crítica à pesada cutucada na ferida em meio à palavras bonitas, frases subjetivas - e mutias vezes de difícil entendimento - aliadas à um estilo musical heterogêneo que passa por Reggae, Rock, Samba, Rap, Folk, coloca essa banda carioca num patamar à parte dentro do universo da música. Essa é a primeiríssima canção que ouvi deles há muitos anos e, desde então, minha preferida que sempre me fez viajar e pensar sobre seus versos. É do álbum excelente "Lado A Lado B", de 1999. Segue a letra:




O Que Sobrou Do Céu
(Yuka)

O, la lá, o la lá, ê ah
O, la lá, o la lá, ê ê
O, la lá, o la lá, ê ê ah
O, la lá, o la lá, ê ê

Faltou luz mas era dia,
o sol invadiu a sala
Fez da TV um espelho
refletindo o que a gente esquecia

Faltou luz mas era dia... di-ia
Faltou luz mas era dia, dia, dia

O som das crianças brincando nas ruas
Como se fosse um quintal
A cerveja gelada na esquina
Como se espantasse o mal

O chá pra curar esta azia
Um bom chá pra curar esta azia
Todas as ciências de baixa tecnologia
Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina

Pra gente ver... por entre prédios e nós...
Pra gente ver... o que sobrou do céu... o la lá

O, la lá, o la lá, ê ah
O, la lá, o la lá, ê ê
O, la lá, o la lá, ê ê ah
O, la lá, o la lá, ê ê

Vamos à andança...

Se um Instituto de Pesquisas Altamente Úteis descobrisse qual a frase mais dita quando acaba-se a luz, a grande campeã seria algo do tipo: "Que ruim... Quando falta luz, não dá pra fazer nada". Essa triste constatação reflete um pouco de como nossa sociedade já partiu de vez pro mecânico e sem vida, deixando de lado a felicidade simples de tantas coisas. Se faltar luz de noite, dormir já resolve o problema de muita gente (eu incluso, é claro). Se for de dia, como na canção do Rappa, por quê não sair de casa? Dar uma volta, conversar com amigos, ler um bom livro, fazer exercícios? Tudo isso é esquecido no dia-a-dia, substituído pela "amiga de todas as horas", a televisão. E atento à isso, Marcelo Falcão nos desperta já usando de sua voz grave cheia do seu sotaque carioca desde o primeiro segundo de música. Suas vocalizações, característica forte do cantor, contribuem pro ótimo e pesado clima que se forma. Daí vem a triste, porém verdadeira fala nos versos: "Faltou luz mas era dia, o sol invadiu a sala, Fez da TV um espelho refletindo o que a gente esquecia". Outros detalhes singelos, porém que tem sua própria felicidade despercebida são descritos na próxima estrofe: "O som das crianças brincando nas ruas como se fosse um quintal, a cerveja gelada na esquina como se espantasse o mal". Mais à frente outro verso sensacional é o que resume tudo: "Todas as cores escondidas nas nuvens da rotina". É ou não é? A gente corre tanto, trabalha tanto e vive tanto no piloto automático que, muitas vezes, deixamos de perceber momentos incríveis à nossa volta, como uma mãe andando na rua de mãos dadas com seu filho, por exemplo, ou a formação de uma nuvem no céu em forma de rosto. Falando em céu, aí vem o meu verso preferido, praticamente responsável pela reflexão toda: "Pra gente ver por entre os prédios e nós o que sobrou do céu". Aí fica a crítica da banda à esse nosso modo de vida tão automatizado que mal percebemos os prédios que sobem diariamente e nos tapam a vista do céu, uma beleza que deveríamos apreciar todo dia. Tomo a liberdade de ilustrar o verso com essa foto:


Aqui perto de casa. Costumava dar pra ver o céu.

Pra encerrar num tom não tão melancólico, vale a pena absorver a dica do Rappa e enquanto isso ouvir uma bateria esperta ao fundo, uma guitarrinha com um riff ótimo à frente e a acelerada violenta de Falcão nesse verso do céu. É de fazer qualquer um prestar um pouco mais de atenção ao dia-a-dia e viver mais intensamente seus momentos. Faça isso: hoje pare em alguma hora do dia e olhe pro céu ;)

Nunca ouviu?

Ouça e aprecie o que sobrou do céu. Escute:

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