[ESPECIAL] A Tábua de Esmeralda

Reflexões sobre o universo, Deus, alquimia, religião e o melhor disco de Jorge Ben


Um dos mais importantes álbuns brasileiros é, sem dúvida, "A Tábua de Esmeralda", lançado pelo mestre Jorge Ben em 1972. Artistas de praticamente todas as áreas e segmentos, músicos de todas as vertentes, sempre apontam o disco de Ben como uma fonte de inspiração e referência na música nacional. Não é por menos. O trabalho é um divisor de águas na carreira do cantor e compositor carioca, onde Ben, inspirado pela lendária Tábua de Esmeraldas, assumiu de vez seu lado místico-espiritual e passou a dedicar boa parte de suas canções à Deus, ao Cosmo e às suas próprias reflexões sobre o sentido da vida. O disco é tão icônico que merece uma análise mais completa sobre suas canções. Para isso vamos desvendar esse disco passo a passo:



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"A Tábua de Esmeraldas" é épico desde seus primeiros segundos, quando Ben pede à sua equipe de músicos que sentem-se. O recado serve para nós também, pois o que vem a partir dali é algo de surrealidade e magnitude tal que poderia nos tirar o equilíbrio facilmente. Abre-se então o disco com Os Alquimistas Estão Chegando. A alegre canção que começa tranquila e cresce com a ajuda dos excelentes backing vocals de Ben é apenas um teaser. Ela traz um pouco da principal materia desse álbum: ritmo ora tranquilo, ora delirante, poesia incrível e misticismo. Os Alquimistas anunciados por Ben são os misteriosos personagens que tanto intrigam aqueles que buscam explicações ou apenas vislumbres dos segredos do universo. Como sua habilidade sobre humana para descrever as coisas e situações mais básicas, Ben nos dá todos os detalhes desse grupo de cientistas-filósofos - desde sua descrição física até seus preciosos materiais. Não tardamos a perceber que o próprio músico e sua banda são os verdadeiros alquimistas, capazes de criar fenômenos incríveis com apenas alguns instrumentos.

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O disco segue com seu tom tranquilo e altamente descritivo com O Homem da Gravata Florida, poesia absurdamente deliciosa, na qual Ben teve uma percepção da Luz de Deus em uma simples gravata e lhe dedicou uma obra inteira.

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Errare Humanum Est surge então com o outro tom que define o álbum: a dramaticidade. É nela, em contraste com a suavidade já mostrada até aqui, que Ben encontra equilíbrio para o disco. Errare Humanum Est é um dos pontos mais altos do trabalho, não só por sua sonoridade mais sombria, cheia de ecos e efeitos, além da voz muito mais sofrida de Ben, como também pela sua letra. Aliás é ela quem pede tal cenário. Ela trata da famosa teoria dos Deuses Astronautas, sugerida por Erich von Däniken em seu livro de 1968. A ideia do autor, reforçada por inúmeras evidências existentes no mundo, é a de que a humanidade foi guiada em seus primórdios por seres de outros planetas que passaram a ser cultuados como deuses. Seriam eles os repsonsávels pelas Pirâmides do Egito, pelo Stonehenge na Inglaterra, pelas linhas de Nazca no Peru, dentre inúmeras outras intervenções na natureza sem aparente explicação. Esse pensamento dá pano para muita manga para quem gosta de refletir sobre a vida e o universo. Afinal, não estariamos então completamente desconectados do resto do universo, mas sim, enraízados nele desde nossas origens. É pensando nisso que Jorge Ben declama com fervor seus questionamentos: "De onde vem o nosso impulso de sondar o espaço?". Mais à frente o cantor coloca outra frase marcante: "E de pensar que não somos os primeiros seres terrestres, pois nós herdamos uma herança cósmica". "Nem deuses, nem astronautas. Eram os deuses astronauats". Com uma emocionante contagem regressiva marcada pela bateria poderosa, Ben encerra sua canção. Para quem discorda ou não quer nem ouvir falar na tal teoria, Ben dedica-lhes o título, famosa frase atribuída a Santo Agostinho: "Errar é humano".



Como que para tranquilizar o ouvinte após a forte viagem da canção anterior, Ben coloca em seguida Menina Mulher da Pele Preta, uma música que viria a se tornar um de seus maiores sucessos. Romantica, apaixonada, erótica, a canção da Menina Mulher é mais um delírio do sábio observador que é Jorge Ben. Ele sabe, desde o primeiro segundo, que a vida não lhe dará mais do que um vislumbre da maravilhosa garota, mas isso não o impede de sonhar e divagar. De preferência, "com malícia" como ele e suas incríveis backing vocals cantam...

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Seguindo o mesmo raciocínio de Homem da Gravata Florida, a próxima canção, Eu Vou Torcer, é mais um testemunho da beleza da vida. Típico pensamento de quem tem a felicidade plena dentro do coração e é capaz de se maravilhar com todas as coisas do mundo, por menores que sejam. É com essa gratidão ao universo e a Deus que Ben diz que vai torcer "Pela paz, pela alegria e pelo amor. E pelas moças bonitas, eu vou torcer, eu vou". Se há algo cativante sobre Jorge Ben é sua habilidade em ser extremamente carinhoso sem soar ridículo; ser extremamente religioso sem soar chato; ser extremamente observador sem soar obsessivo. Como o mestre tempera suas poesias é um segredo que não ouso tentar entender, mas é o caso aqui. Vou Torcer tinha tudo para ser uma canção padrão "Power Point", mas ao adicionar esse "E pelas moças bonitas" com seu sotaque forçando o X ao máximo, Ben desconstrói a própria canção e ri da nossa cara ao tentar classificar sua obra. Mas a verdade que fica é essa: Ben é inclassificável. Se há um genêro ao qual ele se enxaica, esse gênero chama-se Jorge Ben.



Magnólia é mais uma canção de amor, porém diferente de Menina Mulher, essa contém aquele fator decisivo que separa o sábio observador do protagonista. Aqui o narrador sabe que seu amor é correspondido e declama com paixão seus versos para sua amada. Os violinos que permeiam a obra são apenas mais um delicado presente que recebemos, tão belos como deve ser Magnólia. Não podemos deixar de observar ainda o tom místico quando o músico diz: "Já consultei os astros. Ela chega na primavera. Ela já se encontra a caminho voando numa nave maternal dourada linda e veloz feita de um metal miraculoso com janelas de cristal e forro de veludo rosa".

A sequência se dá com outra canção de amor não correspondido, porém respondido com alegria, como somente poderia ser vindo dele. Minha Teimosia, Uma Arma Para Te Conquistar como o próprio nome diz é sobre aquele personagem que não tem uma chance de sair com a garota que ama, mas não vai deixar de tentar. "Vou vencer pelo cansaço até você gostar de mim", ele diz. Com um dos backing vocals mais bonitos que existe, fica difícil não acreditar em sua certeza inocente.



A próxima canção é uma homenagem ao "Senhor das Guerras, Senhor das Demandas", Zumbi o escravo que comandou uma revolução contra seus captores e fundou o lendário Quilombo dos Palmares, até hoje um símbolo da resistência contra a opressão. Invocando esse líder histórico, Ben declama nomes de países africanos vítmas do tráfico de escravos, dessa vez com um ritmo inspirador e cheio de coragem e liberdade.

Única canção de Ben em inglês no álbum, Brother aparece para colocar o tempero religioso tão presente em quase todos os discos do músico. Brother é, assim como Zumbi, uma invocação, mas dessa vez em nome de Jesus Cristo. Ben diz, seus backing repetem e somos inspirados com amor e atitude: "Irmão, prepare mais um caminho de alegria para meu Senhor, com muito amor, flores e música". O refrão é arrepiante com os gritos em coro: "Jesus Christ is My Lord, Jesus Christ is My Friend" (Jesus é meu senhor, Jesus é meu amigo). Difícil ouvir e não querer cantar junto.

O Namorado da Viúva encerra o miolo do disco e a parte com canções mais "normais", se é que podemos chamar assim qualquer obra de Jorge Ben. Me refiro como normal as canções que não abordem temas cósmicos e místicos, como é o conceito do disco. Namorado da Viúva é velha conhecida de todos brasileiros, uma canção engraçada sobre uma curiosa viúva, da qual todos pretendentes desistem após os primeiros encontros. "Que viúva é essa, que todos querem, mas tem medo, tem receio de ser dono dela?" pergunta o narrador, mais uma vez no papel do sábio observador, humilde por fora, malandro por dentro.



Chegamos então ao verdadeiro clímax do álbum e canção que deu título ao mesmo. Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda é uma música inesquecível que te fará pensar muito sobre tudo. A começar pelo seu trabalho instrumental, com o violão suave e a backing vocals de Ben contribuindo com suas maravilhosas e miraculosas vozes e mulheres batalhadoras e vividas. Aqui, Jorge Ben explica então do que se trata a tal Tábua de Esmeralda. A própria letra explica seu precioso conteúdo. Vale a pena ler na íntegra:

Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda
(Ben/Fulcanelli)

Hermes Trismegisto escreveu
com uma ponta de diamante em uma lâmina de esmeralda

O que está embaixo é como o que está no alto,
e o que está no alto é como o que está embaixo.

E por essas coisas fazem-se os milagres de uma coisa só.
E como todas essas coisas são e provêm de um
pela mediação do um,
assim todas as coisas são nascidas desta única coisa por adaptação.

O sol é seu pai, a lua é a mãe.
O vento o trouxe em seu ventre.
A terra é seu nutriz e receptáculo.

O Pai de tudo, o Thelemeu do mundo universal está aqui.
O Pai de tudo, o Thelemeu do mundo universal está aqui.

Sua força ou potência está inteira,
se ela é convertida em terra
Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso,
docemente, com grande desvelo.
Pois Ele ascende da terra e descende do céu
e recebe a força das coisas superiores
e das coisas inferiores.

Tu terás por esse meio a glória do mundo,
e toda obscuridade fugirá de ti.
e toda obscuridade fugirá de ti.

É a força de toda força,
pois ela vencerá qualquer coisa sutil
e penetrará qualquer coisa sólida.
Assim, o mundo foi criado.
Disso sairão admiráveis adaptações,
das quais aqui o meio é dado.

Por isso fui chamado Hermes Trismegistro,
Por isso fui chamado Hermes Trismegistro,

tendo as três partes da filosofia universal.
tendo as três partes da filosofia universal.

O que disse da Obra Solar está completo.
O que disse da Obra Solar está completo.

Hermes Trismegisto escreveu com uma ponta de diamante em uma lâmina de esmeralda.
Hermes Trismegisto escreveu com uma ponta de diamante em uma lâmina de esmeralda.


A Tábua de Esmeralda é uma relíquea do mundo antigo, escrita por um faraó chamado Hermes Trismegisto que, de acordo com estudiosos, seria a mistura do deus grego Hermes com o deus egípcio Tot, provavelmente nascido de alguma mistura entre os povos daquela época. Hermes, o mensageiro do Olímpo era conhecido por inúmeras habilidades, dentre elas o conhecimento da astronomia e dos materiais da natureza. Tot era considerado deus da sabedoria e da magia, dois dos atributos que os alquimistas consideravam como ciência - inseparáveis e indivisíveis. Com o crescimento das religiões monoteístas, houve uma ruptura entre ciência e religião, sendo a magia considerada como heresia e boa parte do conhecimento da alquimia perdido e se transformado em uma ciência renegada, oculta - daí o nome Ocultismo. É isso que fascina Jorge Ben, buscando milhares de "possibilidades impossíveis", vindas de conhecimentos antigos e longínquos. É por isso que a Tábua foi a principal fonte de inspiração para o disco. Afinal, uma lâmina escrita por uma divindade e que é considerado o principal texto da alquimia é algo intrigante para alguém que se interessa tanto por Deus e pelos astros.


O texto contido na Tábua de Esmeraldas é inteiramente repoduzido na canção. É por isso que Ben a creditou também à Fulcanelli, alquimista francês que traduziu o texto do antigo árabe. Ben adicionou a música e o ritmo, além das rimas, sempre precisas. Apesar de um pouco confuso e misterioso, o texto tem um alto valor espiritual. Por exemplo os versos: "O que está embaixo é como o que está no alto, e o que está no alto é como o que está embaixo" que podem simbolizar a presença de Deus em todas as coisas, tanto no paraíso ou universo como na Terra e inclusive dentro do próprio homem. O próprio Jesus Cristo pregava a conexão do Homem na Terra com o Altíssimo, de onde resultaria na salvação do primeiro. Ele em seguida diz: "E por essas coisas fazem-se os milagres de uma coisa só", ou seja, a não-separação entre Deus e o Homem que, em tal estado de percepção, reconhece os milagres e a preciosidade da vida. "Assim todas as coisas são nascidas desta única coisa por adaptação", sendo mais uma descrição de como tudo provém de Deus, porém não deixa de ser Deus, mas apenas uma manifestação adaptada, como todas as formas de vida. Ao reconhecer plenamente que "O Sol é seu pai, a Lua é sua mãe", o indivíduo se torna uno com Deus e, como Ele, carregará o Vento em seu ventre e a Terra em sua alma. "Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso". "Tu terás por esse meio a glória do mundo e toda obscuridade fugirá de ti". Ao encerrar o texto, bem como sua obra, Ben acrescenta os versos finais com emoção na voz: "Assim, o mundo foi criado. Disso sairão admiráveis adaptações, das quais aqui o meio é dado. Por isso fui chamado Hermes Trismegistro, tendo as três partes da filosofia universal".


Se o texto fosse criado apenas como canção já seria incrível, mas pensar que ele foi uma tradução de um antigo texto árabe, que por sua vez foi encontrado em algum manuscrito copiado da verdadeira célebre Tábua de Esmeraldas, milênios atrás, onde história, misticismo e ocultismo se misturam, torna tudo ainda mais mágico. Quem foi Hermes Tismegisto? Em que ano ele viveu? Onde está a Tábua de Esmeraldas? Respostas para essas questões jamais serão sanadas, mas o que importa é que o conhecimento, de alguma forma, chegou. Assim como a Bíblia sagrada ou o Livro Tibetano dos Mortos, a Tábua de Esmeralda envolve milhares de questões que a tornam ainda mais interessantes. O fato de ela ter se tornado música por um dos maiores poetas e músicos braisleiros é uma dádiva grande demais para ser compreendida.



É talvez por isso que Ben encerre seu disco não com a canção título mas com outro drama, Cinco Minutos, onde o narrador justamente reclama, triste e desolado, da falta de paciência de alguém que se recusou a esperar alguns instantes e foi embora. "Pedi para você prá esperar 5 minutos só. Você foi embora sem me atender, não sabe o que perdeu, pois você não viu, você não viu..." A canção soaria engraçada se não fosse trágica, pois serve como um lamento ao mundo em não perceber lições sagradas de mestres antigos, de ignorar a filosofia e de se preocupar apenas com a satisfação momentânea em vez de libertação espiritual.

O que mais me fascina na Tábua de Esmeralda e na obra de Jorge Ben é saber das inclinações religiosas, às vezes fervorosas, mas que não impedem, mas justamente impulsionam reflexões que vão totalmente contra os dogmas cristãos. Deuses Astronautas? Hermes Trismegisto? Que cristão que se preze dará ouvidos à isso? Entretanto se estudarmos um pouco perceberemos que todo misticismo caminha lado a lado com o espiritualismo e que, mais do que impositiva a religião deve ser algo puramente livre e pessoal. Uma religião deve expandir sua mente e não contraí-la ou limitá-la. Cada um tem sua própria interpretação da vida e a graça dela é a mistura que podemos fazer com o que acreditamos. Eu por exemplo, considero-me um Budista-Católico, pois de alguma forma encontrei um sentido único em ambos os caminhos que contém ideias que concordo ou discordo livremente. Essa é a base da filosofia: o uso da razão, com a qual podemos explorar, buscar, conhecer e se admirar. É isso que Jorge Ben fez com tanta maestria e é por isso que A Tábua de Esmeraldas é um disco maravilhoso ;)

Comentários

Anônimo disse…
Massa, esse CD é muito doido!
Crica disse…
Maravilhosa análise de uma obra prima. Parabéns!
Felipe Andarilho disse…
Obrigado Crica! Que bom que curtiu.
Unknown disse…
Ótima análise. Esse disco é imortal mesmo!
Unknown disse…
O disco é uma viagem do princípio ao fim. É de uma beleza inexplicável, sob todos os aspectos. Faz o ouvinte quase chegar as lágrimas, de tão intrigante e mágico. Quanto mais a gente ouve, mais se ouve, mais fascinado a gente fica.